20 de abril de 2022
Confira o resultado do V Concurso Literário do Parque!
Gostaríamos de agradecer a todos os talentosos participantes da competição deste ano: Luzia Lucia da Silva Araújo, Christiano Pereira do Amaral, José Adal Pereira de Souza, Lisabete Lopes Loureiro, Kryssia Ettel Mendonça de Souza, Lais Fernanda Silva Julio e Rafael Caldas de Aquino Neves. Agradecimentos também aos jurados Alexandre Batista da Silva, Gleiciane Rosa e Roberta Campos.
Confira abaixo os três textos que se destacaram entre as demais obras inscritas. Se preferir, faça download do arquivo.
1º lugar: Visita indesejada, por Paula Kotouc
O caldo de substância havia acabado de ficar pronto. Estava uma delícia, o que deixava Joaquina muito satisfeita. A cozinheira estava ocupada desde cedo e por mais que as visitas chegassem apenas para o jantar, os preparativos estavam a mil. O motivo era o convidado especial que passaria a noite na fazenda do Seu Hilário: o príncipe. Ele mesmo, em pessoa. Quando Joaquina recebeu a notícia, achou que fosse uma brincadeira. O que ele faria ali? Logo, viu que a animação deu lugar ao receio: e se ele não gostasse da comida? Afinal, o que um príncipe comia?
Foram poucos dias até a tão aguardada data chegar e nesse tempo, envolta em seus trabalhos do dia a dia, aquela senhora, cuja idade era expressa em várias marcas em seu rosto negro, foi incapaz de aprender novas receitas. Teria que preparar as já habituais, o que não seria um problema para uma cozinheira de seu nível se não fosse a identidade de quem experimentaria aquelas. Será que ele gostava de frango? Diziam que o rei era bastante chegado nas asinhas, mas e o filho? Por via das dúvidas, Joaquina preparou de tudo um pouco. Havia bife, salsichas, legumes variados, peru, um enorme leitão assado, galantine de jacu, arroz de forno com ovos… Até faisão Seu Hilário comprou para aquele banquete! Para a sobremesa, além de frutas frescas, marmelada e doce de figo.
Ainda faltavam algumas horas, mas o nervosismo começava a atrapalhar. Tentou pensar em amenidades, mas nada apagava de sua mente o que em breve ocorreria naquela casa. E se ficasse nervosa e quebrasse alguma louça na frente do príncipe? Pior: se o sujasse com alguma coisa?
Joaquina estava prestes a ter um ataque de nervos. Precisava se acalmar antes que seus temores virassem realidade.
De repente, se deu conta: como seria a aparência dele? Sabia o nome… Pedro. Que mais? Nunca havia visto nenhuma imagem. Seria bonitão ou haveria herdado os traços exóticos do pai? Bem, não fazia diferença pensar em com quem ele se parecia: Joaquina sequer sabia como era o rosto de D. João VI. Ouvira falar ser dono de uma fisionomia nada especial, mas geralmente os autores dos comentários eram pessoas que igualmente não se pareciam com anjos. Talvez fosse inveja. Definitivamente, era isso: inveja. Afinal, o Brasil só tinha um rei, mas agora, ele tinha ido embora.
Isso significava que o príncipe Pedro era ainda mais poderoso. Será que era um homem ruim? Por um instante, chegou a pensar se ele ao menos agradeceria por todo o trabalho que Joaquina estava tendo na cozinha desde cedo, mas logo viu essa ideia ir embora… Onde já se viu um membro da realeza dirigir a palavra a uma simples escrava que não estava fazendo mais que sua obrigação?
Seus pensamentos foram afastados pelo som de cavalos se aproximando. Seria possível que já fosse a comitiva? Ainda era cedo, o sol estava forte, nem havia começado a baixar… Sentiu como se seu coração fosse sair pela boca quando, de repente, ouviu uma voz ecoando perto da janela da cozinha:
— Ô, de casa!
“Ô, de casa?”. Definitivamente, não era assim que um príncipe chegaria, ainda mais pelos fundos da residência. Colocou a cabeça para fora e viu um grupo de homens. Havia cerca de 30 deles. O dono daquela voz era um que estava um pouco à frente de todos. Sua aparência chamava a atenção: era o mais alto que Joaquina já havia visto na vida. Viajantes de toda a parte eventualmente pernoitavam e trocavam de animais por ali e, mesmo assim, nenhum se assemelhava àquele, mas o que a escrava menos desejava naquele momento era um monte de gente aparecendo de surpresa, horas antes da comitiva real, e logo quando o patrão estava acamado, sem poder dar atenção a mais gente.
— A casa hoje está lotada, vocês precisam ir para outro lugar. — disse, tentando afastar os visitantes indesejados, mas assim que percebeu o quão suados estavam, mudou o tom — Posso oferecer um pouco de água, aceitam?
Todos fizeram que sim com a cabeça e num instante, ela voltou com duas garrafas de barro e levou para fora. Precisaria pedir que um negro fosse ao rio pegar mais água antes do jantar. Aqueles homens pareciam famintos! Eram muitos, é verdade, mas Joaquina preparou comida para uma multidão. Talvez pudesse ajudá-los…
— Vocês estão com fome? Não tenho muito a oferecer, ainda estou preparando o jantar, mas acabei de tirar um caldinho do fogo, está uma delícia!
— Eu estava exatamente esperando pelo jantar, mas não posso negar um agrado desses! — para sua surpresa, apenas um aceitou a gentileza, justamente o homem alto. Tinha cabelos cheios e escuros, da mesma cor de seus olhos. Os demais seguiram para amarrar os animais, o que a alarmou. Será que eles não entenderam que teriam que ir embora?
Joaquina entrou com o grandalhão, que apesar do porte, era bastante delicado em seu caminhar. Enquanto era servido com um pouco de comida, deu início à conversa:
— Sabe, a cozinha é minha parte favorita das residências… Para mim, é o coração delas. É onde a vida realmente acontece. Aqui também é assim?
Nunca havia pensado sobre isso, mas era verdade. O senhor praticamente entrava na casa apenas para dormir, comer e se banhar. Os meninos, seus filhos, que agora que eram homens feitos, também. Quem passava a maior parte do tempo ali eram os trabalhadores. Enquanto raciocinava, servia o visitante não apenas do caldo, mas também com um suculento bife servido em um prato fundo já bastante velho – as louças inglesas estavam já dispostas na mesa, onde serviriam o príncipe.
— A vida em todas as fazendas é assim, meu filho! Como é mesmo seu nome?
— Pedro.
Era uma grande coincidência aquele homem se chamar como o príncipe, o que levou Joaquina a ficar ainda mais nervosa. Por um breve instante, aquela visita havia se afastado de sua mente, mas ao escutar aquele nome, toda a responsabilidade que teria logo mais tarde pesou em sua mente. Talvez não fosse uma ideia tão boa receber um príncipe…
— Olha, Seu Pedro, com todo o respeito, mas hoje não temos como abrigar ninguém. Vocês precisam seguir viagem!
— Pode me chamar só de Pedro! — era a primeira vez que algum branco dirigia a palavra àquela escrava sem exigir tratamento diferenciado. Sem dúvidas, ele fez por merecer aquele bifão
— Essa é a Fazenda da Olaria, correto? Propriedade do Sr. Hilário Gomes Nogueira?
— Isso mesmo!
— Nós enviamos um mensageiro há alguns dias informando nossa chegada hoje. Precisamos pernoitar aqui. Vocês não estavam sabendo?
Era só o que faltava. Além da comitiva esperada, aqueles homens todos acreditavam que dormiriam por ali. Não havia quartos para todos e por mais que a comida fosse farta, não alimentaria bem mais aquela multidão. Joaquina estava cada vez mais nervosa.
— Vocês não estão entendendo. Precisam ir e pronto. Logo, logo receberemos o… — interrompeu antes de anunciar ao desconhecido quem chegaria em breve. Ela não sabia nada sobre aquele Pedro e anunciar a visita do seu xará poderia implicar em problemas até de segurança
— Vocês precisam mesmo ir!
— Onde está o Sr. Hilário? — quis saber o desconhecido, surpreendendo-a ao mostrar conhecer seu patrão.
— Está acamado e sem condições de interceder por ninguém. Por favor, pegue seus homens e vá embora. Consigo separar uns pães para vocês levarem.
— Olha, acho que está acontecendo um engano. A senhora sabe a quem está se dirigindo? — questionou Pedro, com um sorriso nos lábios dedurando achar graça daquele momento.
— Meu filho, desculpa, não sei e não quero nem saber. Realmente não podemos receber mais ninguém. Imagina se o príncipe chega e encontra vocês todos aqui? — sem querer, soltou o segredo.
— Fique tranquila, o conheço muito bem e garanto que ele estaria adorando a hospitalidade!
— Mas eu não! Por favor, preciso terminar o banquete assim que vocês forem embora. Termine sua refeição e siga viagem com o grupo.
Por um instante, Joaquina percebeu que Pedro iria responder, mas viu o homem engolir o que fosse dizer. Talvez tivesse se convencido, mas a escrava podia jurar que, no instante que as palavras dele sumiram, o sorriso ficou ainda mais visível.
— Me conte, como a senhora acredita que o príncipe, é?
— Não sei, mas sendo tão importante, está acostumado com luxo, sem dúvidas. Deve vestir roupas impecavelmente limpas e ser trazido no colo pela comitiva. Acredito que o caminho até aqui deve estar em festa. Talvez tragam uma banda de música, mas no mínimo algum instrumento anunciando a presença real deve ser tocado quando esse homem pisar no chão daqui da fazenda. Talvez venha um padre benzer a terra antes e no momento que ele entrar nesta casa, recepcionado pelos meninos, algum negro terá que limpar seus calçados.
— Hum… Que mais? — perguntou, de boca cheia. Definitivamente, apesar do nome igual, ele não tinha hábitos de um príncipe.
— Deve ser um homem que até manda açoitar os negros que olham para ele. Vou te contar uma coisa, estou muito nervosa para recebê-lo. Se algo der errado, nem imagino o que Seu Hilário vai fazer com a gente… Eu não sei nem o que esse homem come! E se for que nem o pai, que só gosta de frango?
— Pode deixar que vou conversar com seu patrão e elogiar a criadagem. Vocês são muitos por aqui?
— Bastantes. A maioria fica lá fora. Somos poucos da casa, mas todos estão muito ocupados preparando tudo para o príncipe.
Pedro havia devorado toda a comida com muita vontade e Joaquina achou que poderia lhe servir um pouco de doce. Afinal, seus homens estavam lá fora, apenas ele estava ali se alimentando.
— Posso lhe contar um segredo? — perguntou o homem, tentando puxar mais assunto.
— Adoraria continuar essa prosa, mas só quero que você coma rápido e vá embora.
Naquele exato instante, a voz grossa do menino Cassiano, que de criança não tinha nada há muito tempo, foi ouvida dentro de casa.
— Joaquina! Joaquina, onde está você? Apresse-se! Estão dizendo que a comitiva irá chegar mais cedo! A comida está pronta?
Naquele exato instante, o rapaz entrou na cozinha e a escrava viu seu rosto ficar sem cor imediatamente.
— Vossa Alteza! — disse, com a voz trêmula.
Joaquina não estava entendendo nada. Que o menino não era muito bom da cabeça, ela já desconfiava, mas desde quando se dirigia a ela, uma escrava velha, como se fosse da realeza? Logo, passou a desconfiar que quem estava doida era ela, pois Pedro levantou-se, apertou a mão de Cassiano e respondeu:
— Pode me chamar apenas de Pedro!
Por um instante, Cassiano não conseguiu falar mais nada, apenas olhava para Joaquina buscando explicações que a negra também não conhecia. Coube ao visitante dar continuidade à conversa:
— Chegamos um pouco mais cedo e fomos muito bem recebidos por essa simpática senhora, que estava me apresentando uma amostra das iguarias que serão servidas mais tarde. O pessoal está lá fora, apenas aguardando a chegada de algum homem para entrarmos na casa. Não seria correto com essa gentil dama. Posso chamá-los?
Naquele instante, Cassiano enrubesceu-se ao enxergar o antigo prato português na mão de D. Pedro, que se despediu da cozinheira de maneira simpática:
— Espero que todos os receios tenham ido embora. Fique tranquila, eu não disse que o príncipe era um homem tranquilo? Ah, sim, esqueci de te responder: gosto muito sim de frango, mas não como meu pai. Está tudo perfeito!
Os elogios, raros na vida de Joaquina, eram o que ela precisava para ficar tranquila. Quem diria que logo ela seria a primeira pessoa da fazenda a conhecer aquele homem de quem sentia tanto medo até segundos atrás? Por um instante, sentiu-se valorizada como nunca ocorrera na vida. A noite toda ocorreu com perfeição e foi acordado que tanto Cassiano quanto seu irmão, Luís, prosseguiriam com a comitiva na manhã seguinte. Para Joaquina, nada daquilo importava: ela sequer sabia o motivo da viagem. A única certeza é que Pedro, aquele homem grandalhão, havia lhe tratado como uma princesa. Logo ela, uma negra velha…
2º lugar: Aquae Vitae – da água vital de São João Marcos, por Cris Dakinis
Eu, Isabel Pontes, nasci em outras águas, muito além desta vila ribeirinha verdejante, para lá das chamadas ultramarinas do reino de Portugal, na cidade de Lisboa, onde deixei família de origens portuguesa e espanhola. Minha história pelas terras do Brasil começou em 1800, aos vinte anos, quando me casei e cá vim morar com meu marido, Jorge, ele também português.
Mal aportamos no Rio de Janeiro, antes mesmo de chegar à nossa fazenda cafeeira de São João Marcos, eu supus estar a gerar meu primogênito, acertei, posto que ele não tardaria a nascer. Por tal, justificava-se a intensa náusea que eu tivera ao cruzar o Atlântico, além do normal, como meu marido me assegurou.
Aqueles dias de enjoos custaram a cessar, por isso cheguei debilitada em nosso novo domicílio, e apesar de encantada com o verde luminoso das matas, o rubi do café nas plantações, e o frescor da região de nossa cidade, eu me sentia adoecida. Só então lembrei-me do pequeno livro de receitas que minha tia Madalena, que residia junto ao porto castelhano de Sevilha, dera-me de presente quando lá estive, antes de eu contrair matrimônio, aconselhando-me: “Isabel, minha querida sobrinha, guarde este volume com atenção, pois haverá dias em que você apreciará este tesouro, que vale tanto ou mais do que muitos preparos de boticários…”
O pequeno livro costurado com exóticas fibras de lãs coloridas era singular e estava com minha família há bem mais de um século, segundo tia Madalena. Especialmente curioso era o seu conteúdo, que reunia apontamentos ilustrados de plantas diversas e seus cultivos, incluindo propriedades terapêuticas de flores e especiarias.
Com o passar daqueles dias iniciais na Vila de São João Marcos do Príncipe, mal pude retribuir visitas de boas-vindas em casas de conhecidos que tão bem nos acolheram, por sentir-me ainda mareada. Deste modo, dediquei-me a folhear o atraente caderno, esforçando-me por desvendar seu misterioso tesouro. Até que encontrei uma receita interessante, intitulada “Aquae Vitae”. Além de água, havia mais dois outros ingredientes para preparar o composto: sal e açúcar em devidas proporções. Era uma receita simples e ao mesmo tempo difícil de aviar, pois água cristalina, açúcar e sal não eram fáceis de se encontrar em todo lugar, ainda mais em tempos de guerras. Contudo, em São João Marcos eu tinha os ingredientes acessíveis e experimentei a receita, ela era mais para salgada do que doce e fez minhas ânsias de vômito cessarem. Mas se nela havia realmente propriedade curativa, como citavam as notas no livro, já isto, até então, eu não podia aferir.
No decorrer de alguns dias, senti-me recuperada e mais bem adaptada ao clima destas novas terras, e foi quando Jorge sucumbiu com um desgaste após passar o dia inteiro a cavalgar debaixo de sol intenso. Ele ficou tão abatido, que me lembrei logo da “Água vital” e fui eu mesma a uma fonte junto de um regato próximo, com um jarro, a fim de colher água fresca e cristalina, temperando-a, em seguida, conforme as instruções do receituário.
Jorge melhorou sem demora, ingerindo pequenos goles da água, sendo tamanha a rapidez de sua recuperação, que reconheci o valor terapêutico daquela poção, concedendo o devido crédito ao tesouro que minha tia havia me destinado.
Devo admitir que uma pequena garrafinha, chamada moringa, feita de barro, a mim apresentada pela cozinheira de nossa casa, aperfeiçoou a utilidade e aplicação da água vital. Posto que o artefato de barro realmente conservava o líquido fresco e acolhedor para transporte, manuseio e conservação. Cheguei a anotar tal observação no rodapé da página da receita. Minha intenção era, desde cedo, repassar aos meus descendentes a relíquia de família.
Os anos passaram e a água continua honrando sua eficácia. Quando há necessidade, preparo-a para as nossas crianças, conhecidos dos arredores, ou até mesmo para a paróquia sempre com água limpa, fresca, turvando-a somente após a adição do açúcar escuro e pouco sal auxiliando os combalidos por mal-estar devido à exposição ao calor excessivo, ou precisados de repor ânimos, sem substituir, evidentemente, o diligente socorro médico quando necessário. Quem, vez por outra, também me pede por uma garrafinha da preciosa água é o senhor Comendador Breves, em cuja residência apreciamos os saraus e discutimos acerca do progresso necessário ao Brasil.
Como descrever minha surpresa ao saber do reconhecimento histórico, por assim dizer, da água vital? Agora, quando leio esta carta de meu filho Joaquim…
Diz meu filho, que após deixar a fazenda rumo à Corte, no Rio de Janeiro, levou consigo o valioso cantil de barro com a água vital que eu lhe havia preparado para, em goles curtos, recompor-se do tempo quente na estrada. Adiciona ele, ainda, que sequer fez uso da bebida, por não ser necessária, entregando-a, porém, a um amigo capitão com quem estudara na Academia Militar… E tal se deu porque o seu amigo estava de mal a pior das entranhas, sendo imperativo que se apressasse, uma vez que lhe fora destinada a tarefa de acompanhar o mensageiro do Correio-Mor, até a cidade de São Paulo, a fim de levar missivas urgentes ao Príncipe Dom Pedro.
As correspondências eram todas nobres, do Rei D. João em Portugal, da Princesa Dona Maria Leopoldina e do senhor José Bonifácio, que havia sido taxativo acerca da urgência:
“Estafe quantos cavalos forem necessários pelo caminho da Corte até Santos ou onde estiver o Príncipe Pedro, mas honre o correio entregando as cartas”!
Joaquim prossegue relatando que o seu amigo capitão tomou somente meio cantil e se restabeleceu em questão de poucas horas, e eu não me admiro de ler isto, mas me assombro com o que leio em seguida…
Ao chegar em São Paulo, próximo ao Rio Ipiranga, o mensageiro do Correio-Mor, chamado Paulo Bregaro, encontrou o nosso Príncipe admoestado com uma desordem digestiva, sem conseguir prestar atenção às cartas que o senhor Bregaro lhe trazia. E, diante de tal cenário, o mensageiro indagou do capitão sobre a tal água… Que, por sorte, este conservara na metade restante do cantil.
Esta água sabe à lágrima! Comentou o Príncipe Pedro, logo após se recompor, aos bocados, com uns pequenos goles.
Por fim, ao quase término da carta, Joaquim dá-me a notícia que realmente me impacta: o líquido restante do cantil, segundo seu colega de armas lhe reportou, foi chamado de “a água vital de São João Marcos” pelo agora Imperador Dom Pedro, que após inteiramente refeito, leu as cartas urgentes e declarou a Independência do Brasil com um sonoro e vigoroso grito às margens das águas do Rio Ipiranga: Independência ou morte!
Fecho a carta, datada deste setembro de 1822, e reabro o meu estimado livro de quase duzentos anos, que me exibe a notável receita da Aquae Vitae… Penso no Brasil atual e tento imaginar o Brasil daqui a dois séculos. Viva São João Marcos, viva as suas águas e viva o Brasil! Eu brado emocionada enquanto ouço o repicar dos sinos da paróquia a anunciar o nosso Reino do Brasil independente, posto que as notícias frescas da corte também acabam de chegar por toda a vila, com as frequentes saudações de “Viva! Salve o Imperador do Brasil”!
3º lugar: A inspiração, por Fernando Vieira
Era uma bela terça-feira, 3 de setembro do ano de 1822, o sol da primavera já começava a esquentar a bendita terra de São João Marcos. Povoado fundado por João Machado Pereira, no ano de 1739, que em suas terras criou uma capela dedicada à São João Marcos e o povoado cresceu em torno dela.
As pessoas que viviam ali se dedicavam à lavoura e o principal produto foi o café, proporcionando o crescimento do vilarejo.
Era uma terra onde, a maioria, eram pessoas simples, lavradores, pequenos comerciantes e escravos compunham a maior parte da força de trabalho local. Essas pessoas não conheciam luxo, muito menos conheciam os nobres da Corte ou a realeza. Só ouviram histórias sobre eles, suas aventuras, conquistas e até mesmo algumas fofocas, fossem ou não verdades.
Até que um dia surgiu um boato que o Imperador D. Pedro I, estando a caminho de São Paulo, passaria pela cidade.
Todos ficaram em polvorosa com a novidade, afinal de contas se tratava do Imperador do Brasil. Era a oportunidade de todos poderem ver de perto a figura do Imperador, algo impensável, para as pessoas simples daquela cidade do interior.
A cidade se preparou para a chegada de uma figura tão ilustre, com certeza a mais ilustre da época, todos trabalharam com afinco para deixar a cidade impecável: limpa, arrumada e enfeitada, para homenagear o Imperador.
As pessoas não faziam ideia do que aconteceria nos dias que se seguiriam a essa passagem do Imperador por lá, ninguém poderia imaginar como seria importante para o país, o que se daria nos próximos dias.
Então logo pela manhã, desse dia de primavera, quando o sol já começava a esquentar a terra daquele lugar, depois de uma habitual noite fresca de uma cidade do interior, a comitiva real chegava à cidade.
Muitas pessoas aguardavam a comitiva, para dar-lhes as boas-vindas, acenando com ramos de flores e finalmente poder ver de perto o Imperador.
D. Pedro agradeceu a recepção e foram levados para um café da manhã na casa do Sr. Joaquim José de Sousa Breves, que depois acompanharia a comitiva até as margens plácidas do Rio Ipiranga, onde aconteceria o tal ato importante.
Depois do café, D. Pedro, pegou seu cavalo e saiu sozinho, com a desculpa de querer conhecer a região, parou próximo a um lago para vaguear em seus pensamentos, deixando seu cavalo matar a sede com a água fresca que ali havia. Sentou-se ao pé de uma árvore e ficou a admirar a vista, enquanto os problemas que enfrentava, em relação as suas obrigações com Portugal, martelavam em sua cabeça.
De repente, ouviu a voz de um menino, que do nada apareceu, dizendo que ele teve um sonho e que um dia tudo aquilo viraria um grande lago.
O Imperador virou para o menino e disse:
— Sonhos, às vezes, são apenas sonhos.
O menino concordou e falou:
— Até que façamos dele realidade.
O Imperador ficou curioso com a fala do menino. Como um menino tão pequeno poderia ter um discernimento daquele.
Ele sorriu e falou para o menino:
— Sim! Tudo na vida pode começar por um simples sonho, um pequeno pensamento, uma ínfima vontade que pode mudar tudo, mas mudar sempre é difícil.
Nesse momento o menino pegou uma pedra e jogou no lago, a pedra afundou naquelas águas.
O menino virou para o Imperador e falou:
— Que triste o fim da pedra, não foi capaz de flutuar, agora ela jaz no fundo do lago. Ela teve pouca força, e por isso não conseguiu ficar mais tempo na superfície do lago.
O Imperador curioso com a conversa do menino, retrucou:
— Mas esse era o destino da pedra, não poderia ser diferente, ela sempre teve o fundo do lago como destino, depois de ter saído de sua mão e jogada naquele lugar.
Falou isso apontando para o lago.
O menino se abaixou e pegou mais uma pedra e dessa vez jogou-a com mais força. A pedra quicou três vezes na superfície do lago, quase chegando à outra margem, mas como a primeira, teve o fundo do lago como destino.
O Imperador sorriu exclamando:
— Nossa! Essa quase atravessou o lago! O menino riu e falou:
— Sim! Quase atravessou, mas está no fundo como a outra. Houve uns minutos de silêncio e o menino continuou:
— Mas o feito da segunda pedra foi maior, ela ousou flutuar enquanto pôde.
O Imperador pensou, talvez em voz alta, ele mesmo ficou na dúvida, pois o menino pôde ouvir. Que havia problemas muito sérios envolvendo o futuro do Brasil e o Imperador não queria deixar o país e voltar para Portugal, pois ele gostava muito dessa terra. Mas fatores externos estavam contaminando a política, seu papel como líder e também já estava lhe contaminando, fazendo-o perder o sono com tamanha preocupação.
O menino que olhava fixamente para o lago simplesmente falou:
— “Nada há fora do homem que, entrando nele, possa contaminá-lo, mas o que sai do homem, isso é o que o contamina”.
O Imperador olhou com espanto para o menino, pois até aquele momento achava só ter pensado e perguntou qual era o nome do menino.
O menino respondeu que alguns o chamavam de João e outros de Marcos. O Imperador não entendeu direito aquilo, mas não se atentou para entender, pois ainda estava concentrado na dúvida se tinha falado ou pensado e na frase que o menino falou.
— Que belo pensamento! Exclamou o Imperador.
O menino agradeceu. Ele pegou outra pedra e deu para o Imperador.
O Imperador pegou a pedra em sua mão, olhou-a por alguns instantes e voltou a olhar para o menino, que o olhava com um ar de admiração. O Imperador perguntou: — O que eu devo fazer com a pedra que está em minhas mãos?
O menino respondeu: O senhor tem a sua independência para fazer o que quiser com a pedra, até o dia em que a morte a leve para o fundo do lago.
Naquele momento não haveria um só homem no mundo que não se comovesse com as palavras do menino e o Imperador não era diferente. Algumas lágrimas correram em seu rosto e uma certeza habitou seu coração. Era hora de agir.
Despediu-se do menino, guardou a pedra em seu bolso, montou em seu cavalo e foi encontrar com a comitiva. No dia seguinte, nos primeiros raios da manhã, partiam para o maior ato da história do primeiro reinado. No dia sete de setembro de 1822, D. Pedro I proclamava a independência do Brasil, nas margens plácidas do Rio Ipiranga. Dizem que na hora da independência ele pegou a pedra, olhou-a por alguns instantes em silêncio, depois a guardou em seu bolso, desembainhou a sua espada e erguendo-a disse a famosa frase: Independência ou morte! Frase que João ou Marcos, não sabia direito como chamar o menino, o inspirara.
Alguns dias depois, voltando para o Rio de Janeiro, ele passou pela cidade de São João Marcos e resolveu procurar o menino. Comentou a respeito com o sr. Joaquim José, quem o acompanhara nessa campanha.
Todos acharam estranho, mas ninguém conhecia o tal menino, havia alguns Joãos e poucos Marcos, mas nenhum deles era o menino em questão.
Foram até a igreja para falar com o padre, pois ele conhecia todos os moradores, era a melhor pessoa para ajudar a encontrar o menino.
O padre ficou muito feliz com a chegada do Imperador em sua humilde igreja, mas, infelizmente, ele não conhecia esse menino e perguntou mais pelo curioso menino, que ninguém conhecia.
O Imperador falou que era um menino muito inteligente e que teve uma conversa muito inspiradora com ele e se lembrou da frase que o menino falou e a disse ao padre:
— O menino me surpreendeu quando falou que “Nada há fora do homem que, entrando nele, possa contaminá-lo, mas o que sai do homem, isso é o que o contamina”.
O padre ouvindo isso se emocionou e perguntou:
— Como era mesmo o nome que o menino lhe falou?
O Imperador respondeu: — Ele foi meio confuso em relação ao seu nome, falou que alguns o chamavam de João e outros de Marcos.
O padre, mais emocionado ainda, andou até a imagem de São João Marcos. Se ajoelhou e beijou seus pés.
O Imperador ainda não tinha entendido o motivo que levou o padre a fazer tal ato e muito menos a se emocionar daquele jeito.
O padre voltou e olhando para o imperador, muito emocionado, falou:
— Essas palavras que o senhor me disse é uma frase de São João Marcos, que era conhecido pelos hebreus como João e conhecido pelos romanos como Marcos. Acho que o senhor viu a aparição de São João Marcos, o Evangelista!
Naquele momento todos se emocionaram, à noite o padre dedicou uma missa a São João Marcos e contou para todos sobre esse milagre.
Confira também os textos vencedores da edição do Concurso Literário em 2021.
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